Frederico Lourenço
AMAR NÃO ACABA
Capitolo 10: MARA ZAMPIERI
Em Fevereiro de 1977, estreou-se no Don Carlo de
Verdi uma cantora que haveria de dividir, como nenhuma
outra desde Maria Callas, os ânimos dos melómanos
lisboetas. Uma das coias que sempre me causa espanto nos relatos
de alguns dos privilegiados que assistiram às récitas
da Callas em São Carlos é a opinião frequente
de que "a presença era fantástica, mas
a voz não prestava para nada".
No caso de Mara Zampieri, a voz era, também, a grande
controvérsia. Para muitos, só tinha defeitos:
não era "redonda", era demasiado incisiva,
não tinha vibrado no registo médio, os uma maneira
horível, a vogal "a" em especial era pavorosa,
branqueava a voz quando era para fazer diminuendo...felizmente,
estas conversas de foyer não afestavam o que
acontecia no auditório. Ovações maiores
que a Zampieri recebeu em São Carlos e no Coliseu,
nem a própria Callas teve.
Pela minha parte, a releção com a voz de Mara
Zampieri foi logo de amor à primeira. Na estética
vocal que eu professava aos treze anos, não me interessava
se a voz era "redonda" ou se deixava de ser: interessava-me
se era exitante. O próprio carácter incisivo
e mordente do timbre dava um interesse único a tudo
o que ela cantava: ouvi-la cantar a Aïda e ouvir depois
uma voz "redonda" (Mirella Freni, Anna Tomowa-Sintow)
era escutar as mesmas notas, mais bonitinhas mas também
infinitamente mais frouxas, com metade de carga eléctrica.
Voltagem era o que não faltava à voz da Zampieri.
Se pensarmos bem, a voz de Antonietta Stella, de que ninguém
fala hoje em dia, era mais redonda do que da Callas: mas qual
delas superava a outra em termos de tensão eléctrica
medida em volts?
Outra coisa especial na voz da Zampieri era a ilusão
experimentada pelo ouvinte de que as notas emitidas eram mais
agudas do que na realidade eram: não era falta de afinação,
era um fenómeno acústico, relacionado com pormenores
físicos que não sei explicar (frequências
e harmónicos). Outra voz célebre com a mesma
característica era a de Gundula Janowitz, que, ao fazer
a mudança de registo para pôr a vibrar a voz
de cabeça, não passava do registo médio
para o registo agudo, mas logo para a estratosfera. A qualidade
de "agudo" começava mais cedo na voz, antes
de as notas e entrarem nas linhas suplementares. O fá
sustenido na quinta linha da pauta já tinha sabor a
si bemol.
Isto dava uma qualidade atómica aos agudos da Zampieri.
Os dós na Aïda! O primeiro no dueto com
Amnéris, o segundo na Ária do Nilo: quem os
ouviu em 1980 e 1981, alguma vez poderá esquecêlos?
O si bemol final da ária "Pace, mio Dio"
da Força do Destino; o si natural com que termina
o Don Carlo: sons estratosféricos na potência,
beleza e electricidade. Bombas sonoras, inolvidáveis.
Mara Zampieri conquistou logo os lisboetas no Don Carlo
de 1977: eu assisti à astreia em São Carlos,
mas também à última récita no
Coliseu e pude constatar que, entre a primera e última
récitas, nascera uma estrela. A ovação
final no Coliseu - depois de uma interpretação
sublime da ária "Tu che le vanità"
e do dueto "Ma lassù" com o tenor - não
deixava dúvidas a ninguém. No entanto, em comparação
com o que aconteceria no ano seguinte, as palmas e gritos
de "bravo!" no final do Don Carlo não
passavam ainda de coisa morna.
Em Abril de 1978 foi o mítico Trovador. Diz-se que
esta ópera de Verdi só funciona se estiverem
em palco os quatro melhores cantores do mundo. Em Lisboa,
chegou-se quase à perfeição, com Zampieri
no papel de Leonora, Fiorenza Cossotto no papel de Azucena
e Piero Cappuccilli no papel do Conde. Cossotto estava prestes
a passar o zénite das suas fabulosas capacitades (a
Amnéris de 1980 seria a última vez que Lisboa
a ouviria em condições vocais quase perfeitas),
mas pode dizer-se que no Trovador de 1978 "arrasou".
No dia última récita (11 de April), saiu uma
entrevista com Cappuccilli no Diário de Notícias,
em que a entrevistadora lhe perguntava se seria verdade que
era um especialista do canto verdiano. A resposta haveria
de ser citada por muitos anos no foyer de São
Carlos: "não sou um especialista do canto verdiano,
sou o maior cantor verdiano do mundo".
Contra estes dois, teria a novata Mara Zampieri alguma chance?
Contra o maior cantor verdiano do mundo e contra uma Cossotto
que se gabava de, na Norma de Paris, ter arrumado num
chinelo a cogela Maria Callas? A verdade é que a Leonora
de Mara Zampieri logrou impor-se de tal modo na memória
de quem assistiu às récitas que os outros passaram
para segundo plano.
Quem esteve no Coliseu dos Recreios de Lisboa, terça-feira
dia 11 de Abril de 1978, nunca esquecerá o que lá
se passou. A seguir à ária do 4° Acto ("D'amor
sull'ali rosee") explodiu uma ovação tal
que a récita, pura e simplesmente, parou. Os gritos,
as palmas - e que gritos, que palmas! Os minutos sucediam-se
uns aos outros e a ovação não parava
nem esmorecia de intensidade. De vez em quando, a Zampieri
inclinava ligeiramente a cabeça, em gesto de agradecimento:
era evidente que ela não queria sair da personagem.
As palmas e os gridos redobravam.
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